quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

o dilema do cético

o telefone tocou até a ligação cair. não lembro se cheguei a tentar uma segunda vez, aconteceram muitas coisas nessas últimas dezesseis horas para eu me lembrar desse detalhe. o fato é que isso me obrigou a pegar um táxi na rua. havia um parado em frente ao meu prédio, uma pessoa desembarcando. o motorista fez o retorno no meio da pista e rumou para o túnel.
poucos segundos depois, seu celular tocou. em outro dia eu me incomodaria com um taxista dividido entre o volante e o telefone, mas sua conversa me deteve. não estamos mais juntos. alguém fala do outro lado. desde ontem. na verdade, desde anteontem. o diálogo – que eu presenciava unilateralmente – se desdobrou por mais um par de frases. ao final, não pude deixar de inverter o protocolo e puxar conversa. desculpe a indiscrição, mas você terminou com uma namorada ou esposa recentemente? namorada. foi isso mesmo, anteontem. curioso. estou indo encontrar minha namorada para ela terminar comigo. pelos minutos que se seguiram fomos amigos, falando sobre a vida e os relacionamentos. nos despedimos com desejos recíprocos de sorte e feliz natal.

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quando assinei o contrato de aluguel do apartamento de onde escrevo agora e peguei as chaves, nos primeiros dias de abril, senti um grande alívio, soma de diversas certezas. a maior delas é que ninguém me tiraria daqui quando chegasse o mês de dezembro. porque os últimos dois meses de dezembro haviam sido marcados por despedidas e mochilas nas costas. este ano seria diferente. não dependeria de ninguém. ninguém poderia tomar meu espaço. mas deus reservas as mais finas ironias para o mês de dezembro. deve ser castigo aos céticos que o ignoram justo na época em que se comemora sua encarnação. um teto não é única coisa de valor que um homem tem, nem a única que lhe pode ser tomada. então ele se programou com antecedênia e preparou por exatos quatro (ou foram seis?) meses algo que me fosse caro, para ter o que me tomar.

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acordei depois das onze, ainda com as compras de natal incompletas. precisava encontrar o presente mais importante de todos, o do meu avô: uma garrafa de porto, mas não qualquer um. precisava ser um ramos pinto, como os que ele comprava sem dificuldades uns cinquenta natais atrás. já havia percorrido várias delis ao longo da semana, sem sucesso. me encaminhava para botafogo quando decidi fazer uma tentativa no largo do machado, antes de encarar o metrô. um a zero. restava então passar na papelaria ao lado para comprar os embrulhos da garrafa do meu avô, do meu pai, e do presente da minha sobrinha-afilhada. a senhora tem aquelas embalagens para garrafa? tenho sim; tem essa aqui, tipo saco, e essa outra... quero daquela ali, de papelão, duas. ela pegou as embalagens sorrindo, eram as duas últimas da loja. um segundo depois uma mulher pedia a mesma coisa, e ela lamentou. o rapaz pediu primeiro. queria também um embrulho tipo saco, bem grande. serve esse aqui? serve. outro risada, era também o último daqueles. hoje é véspera de natal, eu sabia que corria o risco de não encontrar. mas você encontrou, oras. os últimos, dos dois tipos que precisava. você tem sorte, ein, deve ser daquelas pessoas que conseguem tudo que querem. um feliz natal.

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obrigado, senhor, pelas finas ironias.
mas sem amém.