terça-feira, 30 de dezembro de 2008

estômago

prezados leitores, esqueçam os elogios que fiz à intensidade da vida. é muito difícil desejar as coisas como se nos apresentam quando as realizações são poucas. e hoje elas são. então, tudo se torna metáfora. como, por exemplo, ir à rua, comprar quatro lindas berinjelas, começar a embrulhá-las em papel alumínio antes de colocá-las no forno, perceber que o papel será pouco, voltar à rua para comprar mais, finalizar o trabalho. após três longas horas, retiro a primeira delas do forno. a faca desliza fácil, expõe-se a polpa verde-escuro. e o que ela secreta, além de fileiras de sementes e um cheiro maravilhoso? uma larva. morta, obviamente, assada lentamente dentro do que foi ao mesmo tempo sua casa e seu alimento. abro mais duas berinjelas com esperança de que fosse um problema pontual, mas estava enganado. a última vai para o lixo ainda embrulhada. como o estômago.

domingo, 28 de dezembro de 2008

eis que a inspiração retorna

daqui de baixo parece que o prédio se curva sobre mim. é noite, a última janela se apaga, do quinto e último andar. o que bebo não é café, não fui eu que preparei, não há uma só nuvem no céu. quem chove de resignação sou eu. acendi um cigarro e me obriguei a pensar: nas mulheres que amei sem ter, e nas que tive sem amar.

os ombros suportam o mundo

se fosse para dizer que faltam palavras seria melhor não começar. palavras sobram, o que falta é sensibilidade para juntá-las da maneira certa. resignado, cito em vez de criar.

os ombros suportam o mundo

chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
tempo de absoluta depuração.
tempo em que não se diz mais: meu amor.
porque o amor resultou inútil.
e os olhos não choram.
e as mãos tecem apenas o rude trabalho.
e o coração está seco.

em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
és todo certeza, já não sabes sofrer.
e nada esperas de teus amigos.

pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
as guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
chegou um tempo em que não adianta morrer.
chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
a vida apenas, sem mistificação.
(Drummond)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

o último homem do mundo

não. ele não havia percorrido o mundo inteiro para ter certeza de que era o último ser que restara. não era necessário, bastava a sensação, um misto de segurança e enjôo.
pela primeira vez o silêncio não era estático. odiava o vazio, sob todos os aspectos. agora percebia tudo de outra maneira. o silêncio se espalhando, vivo. o silêncio se espalhando vivo emaranhado em tudo nas paredes no ar crescendo cada vez mais. como se, à semelhança da música, ele também tivesse sua dinâmica.
esticou-se no sofá. estava sozinho, isso é óbvio. o telefone não ia tocar. se ligasse, ninguém ia responder. sabia que o cigarro ia acabar, e desejava apenas que acabasse o cigarro antes do fósforo. enchia-se demais de certezas e vontades, e essas certezas comiam sua paciência. não tinha mais medos, era capaz de assimilar tudo. tornara-se uma máquina de fazer cálculos e conclusões. tentou pensar em coisas menos previsíveis, e percebeu que seria o último homem a morrer, e não haveria ninguém para pranteá-lo. ou, quem-sabe-talvez, não morreria nunca mais. imaginou um jogo que disputaria com a vida – seu castigo não seria a morte, porém o tédio assistido. descartou essa possibilidade. voltou-lhe a certeza de que seria o último homem a morrer, e não haveria ninguém para se importar. levantou-se e foi preparar um café.
coou o café direto na caneca e bebeu na cozinha mesmo, em pé. o que o angustiava nesse momento não era a solidão, mas conviver consigo mesmo. talvez sejam a mesma coisa. lembrou-se de quando tinha cinco anos, quando se fechava em seu quarto, sozinho, e fantasiava que era a única pessoa que existia no mundo – tarefa que não era complicada, pois aos cinco anos seu universo se resumia à família e poucos rostos desconhecidos. era simples esquecer essas pessoas. conseguia fazer isso muito bem, não porque pensava que elas não existiam, mas porque simplesmente não pensava.
estava agora numa situação não menos real que suas brincadeiras de infância – apenas inevitável. com a diferença que, quando criança, seu quarto tornava-se cada vez maior. a cada minuto achava um novo espaço, descobria um novo canto, um pequeno pedaço de parede. quando abria a porta e via o corredor e a sala, tudo diminuía, tudo voltava ao normal, à realidade.
andou pelos cômodos como quem se despedia. experimentou o barulho dos seus próprios passos no piso de tábuas. caminhou pelo jardim nos fundos, viu as pedras cheias de musgo, um banquinho enferrujado, vasos quebrados, com a terra emaranhada de raízes mantendo-se firme – via um pouco de vida e morte em tudo.
voltou à sala. havia uma enorme parede branca, muito bem pintada. sentou-se novamente no sofá. a parede enorme e branca era vazia demais e oprimia todo o resto. oprimia até mesmo o pesado relógio de pêndulo. a mesinha, de madeira crua, servia de apoio aos pés e sustentava também o telefone, dois maços de cigarro, a caixa de fósforos e o cinzeiro. acendeu um cigarro. fumava com calma. puxava muita fumaça, prendia-a por bastante tempo. quando estava na metade do cigarro buscou outro dentro do maço. segurou os dois unidos pelos filtros, mexendo lentamente o cigarro apagado, depois o aceso, como se brincasse com ponteiros de um relógio. ficou observando os movimentos de seus dedos. devolveu o cigarro apagado ao maço. deu uma tragada demorada. nesse momento percebeu que os cigarros não eram ponteiros, mas algarismos. os ponteiros continuam sempre inteiros, fortes, eternos. já os algarismos, estes sim são perecíveis.
olhou para os dois maços sobre a mesinha, um fechado e outro aberto. pegou o que estava aberto. contou pacientemente – ainda havia treze cigarros. com os outros vinte, tinha trinta e três. exatamente o número que precisava para escrever de um a doze em romanos. visualizou um grande círculo no chão e formou o um, o dois, o três, depois fez o quatro – usando dois cigarros para formar o v –, até chegar ao nove, quando usou também dois cigarros para fazer um x. por fim, o doze. admirou sua obra de longe, agora sentado na mesinha. ato contínuo, acendeu o cigarro que formava o um. em seguida, um dos cigarros que formava o dois, depois o outro, e assim por diante. burocraticamente. tudo tinha uma ponta de tédio. fumava e acompanhava outro relógio, o pesado relógio de pêndulo.
quando apagou o último cigarro, os ponteiros do relógio pararam. o tempo agora era dele. não soube expressar o que isso significava. não podia dizer que se tornara capaz de fazer passar um dia inteiro em dez minutos, ou dez minutos em uma hora. todo tipo de medida, todo tipo de métrica já não existia mais. o tempo agora era ele.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

frase de impacto IV

entrou uma vírgula no meu ânimo.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

são paulo

sinto saudades das duas semanas de setembro que passei em são paulo. sinto saudades da impessoalidade dos quartos de hotel. e, timidamente, confesso que prefiro os piores, os menores, sem distrações. aqueles dos quais se diria "pelo menos é limpo", aparente elogio que, na realidade, resume um sem número de defeitos.

durante esses dias, longe de tudo que me era pessoal, não me restava nenhum bem que não fosse a mim mesmo. por conta disso, perdi o sono mais que de costume. sonhei com diferentes mulheres que respondiam pelo mesmo nome, enquanto planejava um romance sobre uma mesma mulher que atendia por diversos. estiquei os finais-de-semana. comprei mais coisas duráveis que perecíveis, acreditei no futuro.

sinto saudades de estar sozinho numa cidade estranha. de estar inescapavelmente sozinho. sinto saudades de ser o último homem do mundo.

sábado, 6 de dezembro de 2008

reflexão...

... de um fim de tarde de sábado em que dormi apenas de seis às dez da manhã: não sei se confundi a ressaca com o absurdo da existência ou o absurdo da existência com a ressaca.

imprecisões

— Calai-vos, malditos! a imortalidade da alma!? pobres doidos! e porque a alma é bela, por que não concebeis que esse ideal possa tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite a cabeceira de um cadáver? E então não duvidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas pálpebras iam abrir-se, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! e por que também não sonhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! não mil vezes! a alma não é como a lua, sempre moça, nua e bela em sua virgindade eterna! a vida não é mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo do verme vai alvejar-se no cálice da flor ou na fronte da criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o átomo da inteligência de Platão foi talvez para o coração de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade pela metempsicose, bem! talvez eu a creia um pouco; pelo platonismo, não!
(Noite na Taverna)

analisados os problemas do conceito de morte e das interferências da palavra na própria observação do fenômeno, é interessante agora rever os conceitos gerais de início e fim (intimamente ligado ao conceito de morte).

estes dois conceitos são claramente observáveis no que diz respeito às formas. podemos ver que um animal nasce, se desenvolve e morre. à morte (interrupção das funções vitais), segue-se a decomposição. esta decomposição não é nada mais que um rearranjo de unidades menores (células, moléculas, átomos, o que seja) que formavam o animal. deste modo, o que se entende por morte não é obrigatoriamente um fim, apenas transição de elementos de uma forma a outra, como sugere o trecho em negrito no texto que abre esta parte.

abandonando as impressões visíveis e atendo-se com maior cuidado à noção de transição, podemos eliminar a angústia da busca por possíveis inícios e prováveis fins, visualizando com precisão a noção de infinito. a melhor representação para este conceito é a reta, que não podemos precisar onde começa nem onde termina. para cada menor unidade há uma reta, e as formas observáveis (animais, plantas, objetos) são meras secções desta reta. terminada uma forma, começa outra, sucessivamente.

contudo, a formulação dos conceitos de início e fim para os seres nos condiciona a pensar todo o restante dos objetos encaixados entre estes dois episódios, inclusive o próprio universo. mas nada impede que o universo sempre tenha existido, não em sua organização observável atual, mas como um conjunto de unidades mínimas infinitas, dispostas de outra forma.

reforça-se assim o caráter equivocado da idéia de continuidade embutida na morte, pois mesmo a interrupção dos sinais vitais num ser não é representação absoluta de fim. o universo é uma estrutura cíclica, formada por séries infinitas de recomeços.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

persistência de existência

o surgimento da palavra ‘morte’ não pode ser precisado na história, mas é, sem dúvida, fruto da necessidade de conceber um termo para verbalizar a interrupção da vida. as conseqüências desse surgimento podem ser previstas quando levamos em conta a seguinte afirmação de foucault: ‘no que há nome para dizer as coisas mentais elas passam a existir com mais persistência’. (li também em borges: ‘para os gregos, era impossível um nome substantivo sem alguma corporeidade.’) no momento em que a interrupção da vida recebe um nome, morte, sua percepção passa a sofrer influência não só da observação do evento em si, mas também da própria existência da palavra.

acredito, portanto, que derivam desta influência as noções de continuidade post mortem, pois a partir do momento em que existe um signo (morte) para definir o que é simplesmente um evento, esse evoca um significado (interrupção da vida) e um significante, que seria imagem acústica ou gráfica da morte. citando novamente foucault, quando diz que ‘para o que é coisa mental, há grande dependência dos conceitos e, conseqüentemente, da cultura’, atento para o fato de que todas as culturas estão permeadas de símbolos para a morte, como paraíso, inferno, purgatório, fantasmas etc. logo, a idéia de estado se sobrepõe à idéia inicial de evento.

outro problema lingüístico que dificulta a apreensão do conceito como evento é a existência do verbo ‘morrer’ (não cabe aqui discutir se o substantivo originou o verbo ou vice-versa). o ato de morrer, como já foi dito, não existe além de um instante. mas como o verbo permite diversas conjugações, entre elas ‘tal pessoa está morta’, transmite-se a idéia equivocada de permanência, como se houvesse uma extensão da morte. na realidade, o correto seria dizer ‘tal pessoa morreu’, sempre no pretérito perfeito do indicativo, pois não existe nada além deste evento e ele faz parte do passado, somente.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

o conceito médico de morte

não é necessário explicar os motivos que levam a morte a ser objeto de estudo tanto médico quanto filosófico; vou direto ao ponto: a definição da morte sofreu variações em decorrência do avanço tecnológico da medicina e da disponibilidade de informação, ficando claro que deve levar em consideração também valores culturais.

para muitos que lêem este texto é notório o paralelo entre o medo da loucura e o medo da morte, tendo em vista que ambas significam a perda da consciência. porém, de acordo com a resolução cfm nº 1.480/97, a morte equivale à ‘parada total e irreversível das funções encefálicas’. a perda da consciência está entre as conseqüências desta parada, mas a recíproca não é verdadeira, porque um indivíduo em estado de coma pode manter suas funções vitais sem auxílio de aparelhos e, contudo, permanecer inconsciente. desse modo, é a irreversibilidade a primeira característica essencial da morte.

outras duas características da definição clínica são o estabelecimento da morte como um acontecimento, não como um estado, e sua classificação a partir da negação da vida. ou seja, ela é observável apenas em contraposição a outro conceito (semelhante à definição física do frio como ‘ausência de calor’). se uma é a negação da outra, a coexistência torna-se impossível. logo, há uma linha tênue que as separa; num instante vive-se, e, no instante seguinte, não.

a morte, portanto, é um evento pontual, que representa o momento exato em que se registra a interrupção irreversível das funções encefálicas. e assim o é mesmo que não seja observada prontamente, mesmo que haja um intervalo entre o óbito e sua constatação.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

sobre o tempo

ei, me escuta: não lhe parece óbvio que o correto encadeamento do tempo seja futuro, presente e passado? que surja primeiro aquele, real e palpável em nossas cabeças, para gradualmente se desintegrar no presente, e nos levar a uma eterna espera pelo passado?

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

frase de impacto III

o que importa realmente é a pasta de dentes e a camiseta passada.

frase de impacto II

você, que se apraz com a desgraça alheia: deus vai te carcar no inferno.

frase de impacto I

paixão é tesão que virou neurose.