domingo, 30 de novembro de 2008

anti-nirvana*

hoje pela manhã no ônibus a caminho do trabalho
um homem deu sinal para descer e o motorista passou do ponto
distraído, olhei para trás e vi que o homem franzia a testa, mexia a boca
mas não produzia nenhum som
o homem reclamava para dentro, burocrático
enquanto o ônibus se afastava cada vez mais do ponto
eu me perguntava onde estava a agressividade
por que domesticaram aquele homem?
todas as coisas boas dependem essencialmente da agressividade
como o raw power ou as manchas roxas-esverdeadas de dentadas no ombro
(cheguei até aqui sem usar palavras difíceis)
minha dúvida nunca certificou minha existência
mas pelo menos posso afirmar que escrevo porque não conheço a utilidade das palavras
sei que elas não explicam nada
e desconfio que foram inventadas apenas para agredir

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* ver nirvana, de charles bukowski

a lua

a lua é hoje amarela
como um imenso balão de sódio
desse ódio que eu sinto dela

nostalgia

se você alguma vez já se sentiu incomodado pela possibilidade da não-existência, sua ou do universo, pense agora que, de fato, a sua não-existência foi um fato durante a maior parte do tempo: afinal, onde você estava antes de nascer? você lembra de alguma coisa pré-vida? por que seria diferente com a morte?
a única qualidade da não-consciência pré-vida impossível à não-consciência da morte é que você pode assimilar muitas coisas que aconteceram antes de você nascer. os filmes estão nas locadoras, os livros estão nas prateleiras, as fotos também, algumas pessoas ainda estão vivas.
mas como suportar a curiosidade e a impotência diante do que acontecerá sobre o seu túmulo?
como suportar o mal-estar ao imaginar a não-consciência? essa imagem já é por si só desconfortável, mas ainda assim é apenas um exercício da própria consciência. agora, tente imaginar o nada.
e o deus que criou o mundo? ele foi capaz de construir isso tudo, correto. mas até que ponto ele é capaz de destruir? e se ele desfizesse o mundo, seria capaz de ir mais longe? ele pode fingir que nada aconteceu? teria o poder de apagar de sua própria memória as lembranças do mundo que destruiu?

nada a acrescentar

Frustration, insecurity, and painful striving are the inescapable lot of humankind, and the only life worth living is one in which this fact is squarely faced.
(An Introduction to Existentialism)

urge viver

- Chamam-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.
- Não te assustes - disse ela -, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
- Vivo? - perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certficar-me da existência.
- Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.

(Memórias Póstumas de Brás Cubas)

enquanto isso, transpiro constantemente como se suasse uma febre, bebo o café que eu mesmo preparei ouvindo stones, e me pergunto: a vontade de nada é capaz de transformar um homem para que ele sobreviva apenas das palavras que escreve?

noite de natal

- acho que vou forçar o vômito aqui.
- mas aí é a porta de um bar.
- e daí? tá fechado. existe lugar melhor pra vomitar que a porta de um bar?
- deve existir algum filho-da-puta lá em cima que fica sempre protelando o momento da gente parar de provar as coisas aos outros e poder viver em paz. é, acho que é isso. só essas finas ironias me fazem acreditar que existe um deus.
- não passa nenhum taxi.
- vamos andar até a esquina.
- tá sentindo essa chuva fina? é deus mijando na gente.
- filho-da-puta.

digestão

chove. dois meses atrás eu esperava ansiosamente pela chuva; por um encontro; por um pouco de ar. agora chove e não me importo.
metade das coisas muda para pior, a outra metade continua igual. estou falando agora do que continua igual.
a vida é o que acontece enquanto você digere o seu passado.

catacrese

quarta-feira, 22 de abril de 2004

dos obesos, que pensam com o estômago; dos fracos que aprendem a digerir todos os problemas; dos que não conseguem digerir os problemas (impacientes!) e acreditam que o cérebro precisa vomitar; das mães que gritam aos filhos que não coloquem a cabeça debaixo d'água para não causar congestão; dos atlas de anatomia que não listam como uma das funções do estômago expiar todas as mágoas que o cérebro chora; do mesmo cérebro, que dói a ressaca dos abusos etílicos celebrados pelo estômago na noite anterior; das cápsulas que dissolvem no estômago para aliviar a dor de cabeça; do faquir que jejua e sabe que não precisa de motivo; das crianças desnutridas (fodam-se elas!) que não conseguem pensar.

estômago e cérebro são espelho, são irmãos, se confundem. o ser humano é só estômago e cérebro.

anotação

quarta-feira, 21 de abril de 2004

há dias tenho sentido uma dor de cabeça fraca, mas constante; como se meu cérebro estivesse enjoado e precisasse vomitar.

infância

"você não era uma criança feliz, bruno."

terapia II

- se você não tenta, a resposta vai ser sempre não. se você tentar existe, pelo menos, a chance do sim.
- é diferente. o vazio do não tentar mantém sempre uma possibilidade em suspenso. o outro não é absoluto.
- a questão é que só exposto a ele você tem a chance do sim. desse jeito, você não vive.
- mas também não morro.

terapia I

- mas eu não consigo, ainda não consigo entender essa questão do ego.
- auto-proteção, instinto de defesa, meu caro.
- não faz sentido, não faz sentido se defender diante de tanta coisa assim, de coisas boas.
- mas envolve medo, funciona assim com tudo que envolve medo. vou dar um exemplo: se uma cobra venenosa entrasse aqui na sala, só existem duas reações, só duas, que você poderia ter: enfrentar, ou fugir.

estava errado. ignorava por completo a terceira possibilidade, mais provável que todas as outras: eu assistiria à chegada da cobra e, não por paralisia, mas ciente do risco, me deixaria ser picado e morrer. ele ignorava a displicência de meursault.