quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

o dilema do cético

o telefone tocou até a ligação cair. não lembro se cheguei a tentar uma segunda vez, aconteceram muitas coisas nessas últimas dezesseis horas para eu me lembrar desse detalhe. o fato é que isso me obrigou a pegar um táxi na rua. havia um parado em frente ao meu prédio, uma pessoa desembarcando. o motorista fez o retorno no meio da pista e rumou para o túnel.
poucos segundos depois, seu celular tocou. em outro dia eu me incomodaria com um taxista dividido entre o volante e o telefone, mas sua conversa me deteve. não estamos mais juntos. alguém fala do outro lado. desde ontem. na verdade, desde anteontem. o diálogo – que eu presenciava unilateralmente – se desdobrou por mais um par de frases. ao final, não pude deixar de inverter o protocolo e puxar conversa. desculpe a indiscrição, mas você terminou com uma namorada ou esposa recentemente? namorada. foi isso mesmo, anteontem. curioso. estou indo encontrar minha namorada para ela terminar comigo. pelos minutos que se seguiram fomos amigos, falando sobre a vida e os relacionamentos. nos despedimos com desejos recíprocos de sorte e feliz natal.

* * *

quando assinei o contrato de aluguel do apartamento de onde escrevo agora e peguei as chaves, nos primeiros dias de abril, senti um grande alívio, soma de diversas certezas. a maior delas é que ninguém me tiraria daqui quando chegasse o mês de dezembro. porque os últimos dois meses de dezembro haviam sido marcados por despedidas e mochilas nas costas. este ano seria diferente. não dependeria de ninguém. ninguém poderia tomar meu espaço. mas deus reservas as mais finas ironias para o mês de dezembro. deve ser castigo aos céticos que o ignoram justo na época em que se comemora sua encarnação. um teto não é única coisa de valor que um homem tem, nem a única que lhe pode ser tomada. então ele se programou com antecedênia e preparou por exatos quatro (ou foram seis?) meses algo que me fosse caro, para ter o que me tomar.

* * *

acordei depois das onze, ainda com as compras de natal incompletas. precisava encontrar o presente mais importante de todos, o do meu avô: uma garrafa de porto, mas não qualquer um. precisava ser um ramos pinto, como os que ele comprava sem dificuldades uns cinquenta natais atrás. já havia percorrido várias delis ao longo da semana, sem sucesso. me encaminhava para botafogo quando decidi fazer uma tentativa no largo do machado, antes de encarar o metrô. um a zero. restava então passar na papelaria ao lado para comprar os embrulhos da garrafa do meu avô, do meu pai, e do presente da minha sobrinha-afilhada. a senhora tem aquelas embalagens para garrafa? tenho sim; tem essa aqui, tipo saco, e essa outra... quero daquela ali, de papelão, duas. ela pegou as embalagens sorrindo, eram as duas últimas da loja. um segundo depois uma mulher pedia a mesma coisa, e ela lamentou. o rapaz pediu primeiro. queria também um embrulho tipo saco, bem grande. serve esse aqui? serve. outro risada, era também o último daqueles. hoje é véspera de natal, eu sabia que corria o risco de não encontrar. mas você encontrou, oras. os últimos, dos dois tipos que precisava. você tem sorte, ein, deve ser daquelas pessoas que conseguem tudo que querem. um feliz natal.

* * *

obrigado, senhor, pelas finas ironias.
mas sem amém.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

há problemas maiores

desfecho do dia dos pais: o presente foi, de fato, um exemplar de o filho eterno, que nem eu mesmo tinha terminado de ler. nos dias seguintes à data, enquanto continuava com o livro, eu pensava, não é o tipo de literatura que meu pai gosta. ano passado dei pra ele um romance policial, simenon, coisa boba. esse ano o importante não era agradar. era mostrar o meu gosto. era eu, falando, 'pai, senta aqui, quero te mostrar um livro que gosto muito...'

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

a pergunta...

... que bate como uma gigantesca pedra sobre a cabeça, ou talvez a pergunta que bate como o desejo de que uma gigantesca pedra caía sobre a cabeça:
'quem sabe se, durante todo esse tempo, a culpa foi sempre e somente minha?'

é o ponto de partida para a pior das reflexões.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

o dia dos pais

sua irmã havia lhe chamado a atenção no meio da semana para o presente do dia dos pais, avisando que daria uma camisa polo, e ele sentiu um mal-estar por ainda não ter pensado no assunto quatro dia antes da data, por não saber o que comprar, mas principalmente por perceber que, no fundo, não queria dar presente algum.
deixou o problema de lado até o dia seguinte, quando a crescente desorganização em seu apartamento o cutucou. lembrou-se que poucos meses atrás desejara dedicar-se tanto aos seus planos mais íntimos que não sobrasse tempo para lavar a louça ou pendurar em cabides a roupa saída do varal, tudo isso para que vivesse em meio a uma bagunça sincera, como aquela enaltecida por bukowski em seu 'o capitão saiu para o almoço'.
lembrou-se dos comentários da mãe sobre um dos primeiros apartamento em que o pai morou, naquele prédio que viria a conhecer quarenta anos depois, onde ficava o consultório do seu terapeuta, e teve medo de tornar-se igual a ele.
pensou por um momento em presenteá-lo com um livro, mas que livro?, era o seu presente-padrão, denotava mais uma vez a desimportância do gesto. livros, eram eles que tomavam seu tempo e provocavam o acúmulo de pratos sujos e camisas amassadas.
aumentou ainda mais o medo quando lembrou que agora estava só, mas estava bem. como imaginava que estaria o pai, do outro lado da cidade. compartilhavam essa prazerosa solidão, separados por três túneis e um elevado, pelo triste fato de que não sabiam conviver muito bem com ninguém, como não souberam conviver um com o outro.
voltou a pensar no presente-livro, e graças a ele encontrou um ponto de divergência. sua bagunça devia-se ao excesso de leituras, ao passo que seu pai não lia. o brusco fim do alívio: não lia mais. mas fora, também, um leitor ávido durante a maior parte da vida. de modo tal que até mesmo suas peculiaridades, como o costume de ler deitado de bruços no sofá, com o livro aberto no chão, foram imitadas por sua filha. aquela, que vai presenteá-lo com uma camisa polo.
viu-se então numa situação que muitos brindam com a frase 'as coisas não acontecem por acaso', para a qual seu ceticismo ainda não produziu equivalente. repousava sobre a cama 'o filho eterno', e decidiu que, se tiver de dar ao pai um livro, será este.
mas o que ele gostaria mesmo dar a seu pai é este texto.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

eça

os vapores do vinho e a fumaça me inspiraram. quando eu virei a esquina de casa eles sopraram no meu ouvido e eu lembrei que à tarde, não sei direito porquê, a luísa me falou estou lendo eça de queiroz, eu perguntei que livro, ela disse os maias, e eu respondi eça de queiroz é o escritor preferido do meu pai, ele leu tudo do eça, tínhamos a obra completa lá em casa (nessa hora eu lembrei que moro sozinho e não sabia se me faria entender com o 'lá em casa'), mas nunca li, e continuando ela já falou li também o primo basílio, respondi, o primo basílio é o livro preferido do meu pai, ela disse você devia ler, eu expliquei sabe por que eu sei que é o livro preferido dele, era uma pergunta retórica, não esperei para dar seguimento, sabe por que eu sei disso, retórica de novo, na única vez em que me mudei com a minha família (outras duas vezes me mudei da minha família) na única vez em que me mudei com a minha família eu tinha onze anos, estava tirando os livros todos da caixa, quando quase rasguei a lombada do primo basílio, minha mãe se assustou, esse é o livro preferido do seu pai, mas o fato é que meu pai nunca me deu um livro e disse você devia ler esse livro, bruno.
por isso que digo que me criei sozinho, mas você deve sempre desconfiar de um homem que bate no peito e diz eu me criei, um homem que fala isso finge ter orgulho, mas na verdade ele só está expressando uma tristeza profunda.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

paraty

a flip foi uma experiência tão íntima que me recuso a compartilhá-la. experiência que inclui não só as quarenta e oito horas que passei em paraty, mas também a primeira semana no novo emprego e o debate a que assisti segunda-feira passada.
restaria, portanto, comentar os passeios pela cidade. este assunto, porém, apesar de não ser privado, não interessaria a mais ninguém além dos que estavam ao meu lado nesses passeios, e seria redundante repetir tudo aqui.
não fosse uma pequena dor que sinto dentro de mim por uma triste coincidência, poderia dizer que estou feliz.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

apocalipse

velho, lembra daquela frase "aos mornos cuspo fora da minha boca"? livro do apocalipse. essa frase me assombrou durante toda a infância, cara. mas é exatamente isso, jesus já me cuspiu faz um bom tempo. me deixou aqui, amornado. não fui capaz de construir uma vida interessante o bastante, que desse uma biografia. nem tão tranquila que me tornasse exemplo.
sobrou esse pouco aqui, que eu vou usando até acabar.

terça-feira, 2 de junho de 2009

carta

querida m.,

hoje foi um dia bastante estranho. acordei antes de o nascer do sol e, por isso, passei toda a manhã sonolento. acabei dormindo novamente pouco antes de meio-dia. acordei duas horas depois, enjoado e sem apetite. porém, como me ocupar das refeições é essencial para escapar ao tédio, decidi sair para procurar um restaurante, algo que me despertasse a fome. acabei por entrar em japonês aqui perto.
sentei em uma mesa no canto e de onde podia observar a rua. os restaurantes sem televisão são tão bons, pena cobrarem tão caro justamente pela ausência de um aparelho. além de tudo havia boa música. quando cheguei tocava aquela primeira música daquele primeiro disco... esqueça, você não vai entender. essa era uma das músicas que eu escutava enquanto planejava deixá-la.
os orientais são bastante espertos, mas falo da esperteza que envolve sensibilidade, não inteligência. nos fizeram aprender a dividir mais que a mesa: somos obrigados a dividir também o prato. tábuas e até barcas de verdadeiros jardins de peixes. mas hoje me restou comer sozinho e calado, como que em oração.
me senti satisfeito mais rápido do que esperava. de qualquer forma, pedi ao garçom os dois harumakis a que tinha direito para a sobremesa. o cozinheiro, em sua pureza de coração, serviu-os separadamente, um em cada prato. afinal de contas, quem almoça sozinho num sábado à tarde?
o garçom levou-os à mesa exatamente como saíram da cozinha, preferindo um pedindo de desculpas à correção. contrariando toda a sensibilidade oriental. me expondo à minha própria solidão.
decidi não tocar num dos pratos. ficou claro para mim que o segundo harumaki era seu. acredito que ainda está lá, intacto, à sua espera.

b.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

café

depois de quase dois meses tomando espresso, tanto da cafeteira italiana de fogão quanto da elétrica (sim, eu tenho uma máquina de espresso, um dos presentes mais perfeitos que já recebi), comecei a sentir saudades do meu próprio café. água fervendo na panela, coador de papel, passar direto na caneca, devidamente escaldada. matei essa saudade durante o final de semana, e foi perfeito. pude ver que ainda estou em boa forma. é fácil fazer café usando dispositivos que indicam sem erro a quantidade de pó e de água. mas passar no coador exige técnica e um pouco mais paciência. em compensação, beber o café que eu mesmo preparei me traz uma tranquilidade incomparável. aquele tal de manuel bandeira tinha razão.

sábado, 16 de maio de 2009

minha liberdade e a parábola da pimenta de sichuan

manhã de sábado fria para os padrões cariocas. a temperatura deve estar em torno dos 20ºC, com sensação térmica abaixo disso por conta do vento, mas o suficiente para as pessoas tirarem os casacos dos armários e a cidade mudar de aspecto. além disso, o céu está cinza e fechado, uma constante ameaça de chuva. em suma, uma manhã em que o rio de janeiro parecia bastante com são paulo.
apesar da ausência de informações oficiais para embasar minha teoria, não tenho dúvida de que existe uma colônia oriental na região flamengo-laranjeiras. é composta em sua maioria por chineses e a artéria principal é o eixo rua cosme velho/rua das laranjeiras/rua marquês de abrantes. só de mercearias são três, mais do que consigo contar por todo o resto da cidade. e foi justamente a uma delas que me dirigi.
nos finais de semana, aquele último quarteirão da marquês de abrantes se assemelha bastante ao bairro da liberdade. falta ainda a feira, uma pena, mas o número de olhos puxados que cruzam meu caminho é enorme. é o lugar onde posso comprar uma latinha de chá de abóbora branca para beber enquanto ando pela calçada. onde vejo belos aspargos frescos, presos pela tradicional dupla de elásticos violeta. e um dos poucos lugares onde existem verduras que não consigo identificar. ou coisas que reconheço por analogia, mas que me surpreendem, como uma beringela de casca completamente branca.
saio de mãos vazias. não compro nada além do chá. quero apenas estar ali e aproveitar a minha liberdade.

falar das mercearias orientais me lembrou da minha história com a pimenta de sichuan. há cerca de dois anos ganhei um livro fascinante chamado "the food of china". entre as centenas de receitas, algumas pediam um ingrediente do qual eu nunca tinha ouvido falar: sichuan peppercorns, ou pimenta de sichuan. reproduzi essas receitas usando substitutos, mas permanecia a vontade de conhecer a tal pimenta. foi quando comecei a frequentar as mercearias. passava os olhos por todas as seções esperando encontrá-la. mas não era uma tarefa simples. o rótulo não estaria no mesmo inglês do livro, mas sim num chinês totalmente inacessível. é o momento, então, de fazer a pergunta: mas bruno, você não sabia como era essa pimenta?
- não.
eu tirava das prateleiras todos os vidros e pacotes suspeitos para olhar a descrição nas pequenas etiquetas (coladas sempre no verso) com a tradução em português. pimentas em pó, pimentas secas, tudo. (o termo inglês peppercorn deixava claro que se tratava de uma pimenta em grão, mas só fui considerar isso muito mais tarde.) eu buscava uma coisa sem ter a menor ideia do que era. é óbvio que não conseguia encontrar.
foi quando voltei ao livro. folheá-lo era um prazer, mesmo que não houvesse nenhuma intenção em reproduzir suas receitas. então eu a vi. nas fotos do preparo de uma das receitas que pedia pimenta de sichuan havia pontinhos avermelhados, claramente distintos dos pontos pretos da pimenta do reino. fiz buscas na internet para confirmar minha suposição e, finalmente, eu sabia a cara do que estava procurando.
na primeira visita que fiz à mercearia depois desse dia lá estavam elas, gritando por atenção, pegando minha cabeça para girar meu pescoço e me fazer notá-las. mas eu ainda precisava ser testado. tiro o pacote da prateleira e leio a etiqueta: "semente de coentro". mas eu conheço sementes de coentro muito bem, e não se parecem em nada com aquilo. seguro, falo com o dono da mercearia, que confirma e se desculpa pelo erro. termino minhas compras e volto para casa feliz da vida.
foi a pimenta de sichuan que me ajudou a entender: para encontrar qualquer coisa, você primeiro precisa saber o que está procurando. e quando você sabe como é essa coisa, nem os acidentes do dia a dia podem te desviar dela.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

cérebro

um dos filmes a que assisti mais vezes foi pi, do darren aronofsky. hoje à tarde lembrei dele e tive vontade de assistir mais uma vez. o maior clichê sobre filmes que repassamos é que, a cada sessão, descobrimos coisas novas. mas não repito isso de maneira leviana. mudamos nós, mudamos o que queremos encontrar, muda nossa percepção.
nunca tinha reparado que o protagonista, maximillian cohen, mora no bairro oriental de nova york, chinatown. isso fica claro nas primeiras sequências, com a menina de olhos puxados que brinca com a calculadora, os praticantes de tai chi chuan no parque e os letreiros das lojas. a partir desse momento, a história fez ainda mais sentido.
max é matemático e expõe logo de início que acredita na existência de um padrão cíclico regendo todo o universo e cada pequena coisa que está contida nele. nada mais próximo da filosofia oriental do que isso. e que me remeteu ao pequeno estudo que fiz do dao de jing ano passado.
durante todo o tempo de colégio fui uma negação em matemática. nada fazia sentido, consegui assimilar muito pouca coisa. logo eu, tão cartesiano, tão pouco sensível. não há dúvidas de que a inacessibilidade da matemática contribuiu para minha admiração ao filme.
enquanto os vizinhos chineses e afins são meros coadjuvantes, um outro grupo tem participação ativa: os judeus. lenny meyer, também matemático, mostra algumas curiosidades numéricas da torah a max, que vão ao encontro da tese que ele defendia. foi quando me vi num segundo ponto curioso: o apartamento para onde acabei de me mudar fica exatamente entre um tempo taoísta e um centro de estudos da cabala. de repente, tudo parecia muito familiar.
outro ponto do filme fez crescer essa identidade. max sofre constantemente de dor de cabeça, que em um de seus pontos críticos é ilustrada pelo personagem cutucando um cérebro com uma caneta, até perfurá-lo.
no entanto, a parte mais interessante do filme continua sendo a confrontação do antigo professor de max. ao ver o ex-aluno envolvido até o pescoço na busca de um padrão para o pi, o mercado de ações e as 216 letras do verdadeiro nome de deus, profere o que até pouco eu achava uma das melhores frases do filme: "as soon as you discard scientific rigor you are no longer a mathematician, you are a numerologist."
mas o que há de errado nisso? foda-se o padrão científico. a vida não nos dá duas chances. não podemos fazer grupo-teste e grupo-controle para os amores, as amizades, as palavras ditas, as decisões tomadas. resta-nos saber o que queremos. e manter isso em mente. sempre a visível. um dia a gente encontra.
urge viver.

terça-feira, 12 de maio de 2009

falta inspiração

queria uma palavra que resumisse tudo que senti nos últimos dias. que abarcasse da serenidade aos mais agressivos sinais de que as coisas não estão bem. como um nome de doença, que classifica e cura. se não há maturidade, que pelo menos haja inocência. ausência de ambas é covardia.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

baixa gastronomia, alta literatura

hoje um amigo me enviou o link de uma matéria do new york times sobre a relação entre gastronomia e literatura. o título da matéria era algo como "vá em frente. estrague meu apetite.", e tratava da relação positiva entre a baixa qualidade da descrição das refeições e a alta qualidade do texto. o autor defendia que, durante a leitura, normalmente acompanhada apenas por um café, não é agradável ver os personagens tendo prazer com comida. da mesma forma que não é agradável ver os personagens tendo prazer com sexo. (existe um prêmio para as piores descrições de sexo, o bad sex in fiction award. costuma ser arrebatado por grandes nomes, o que talvez reforce a tese defendida no artigo.)
confesso que nunca tinha pensado sobre o assunto. a questão nunca me incomodou. para ser sincero, li poucos textos citados na matéria. um deles, "um artista da fome", do kafka, é muito mais uma metáfora sobre o destino incontornável do qual falei dois posts atrás do que sobre comida, de fato.
minha biblioteca gastronômica compõe-se basicamente de livros de receita, dicionários, biografias de chefs e livros-reportagem. é, ainda, pobre de romances. "o clube dos anjos", do verissimo, fica abaixo das expectativas. e "gula", do anlgo-germânico john lanchester ("the debt to pleasure" no original), começa arrastado, não engrenei.
minhas impressões mais significativas sobre o assunto devem-se à leitura de nietzsche, quando ele faz um paralelo entre a dieta e o humor (em sentido amplo, não apenas cômico) do povo alemão. e, logo a seguir, às descrições da culinária chinesa em "a montanha da alma", de gao xingjian e "a boa terra", de pearl s. buck. ambos os livros renderam o prêmio nobel a seus autores. no primeiro, fica evidente a cultura do não-desperdício num país com uma população na casa do bilhão: uma cabeça de porco tem que ser aproveitada ao máximo, tratada como iguaria. no segundo, a riqueza do personagem principal deve-se unicamente à sua capacidade de tirar o máximo de alimento da terra.
por fim, não esqueço da descrição do cheiro das conservas de pepino em "a morte feliz", do camus. um livro chato, é bom deixar claro, mas com passagens marcantes.
quando falei de estômago, sempre tive em mente as mazelas mais do que os prazeres. acredito que é hora de buscar um equilíbrio.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

ikiru 生きる

em ikiru, de akira kurosawa, o protagonista poderia ser condenado à morte por qualquer doença? jamais. só o câncer de estômago, especificamente, condena e resume sua condição. só ele reflete as perdas, a dedicação ao emprego sem sentido, a distância do filho, o projeto de vida mal acabado.
não lembro exatamente quando a metáfora do estômago se fixou com tanta força no meu pensamento. talvez os mais de dez anos de visitas periódicas ao gastroenterologista expliquem alguma coisa. quando parei no hospital por conta de uma pneumonia, o médico analisava o raio-x dos pulmões. "você está em jejum? seu estômago está dilatado. você devia procurar um especialista."
não deixa de ser curioso que outro dos meus filmes preferidos trate da questão, e com muito mais requinte, pois consagra a metáfora estômago e cérebro. a frase que dá subtítulo ao blog é uma fala de travis bickle em taxi driver. os dois filmes retratam, resumidamente, homens solitários e sem esperança que depositam suas energias em causas muito simples, mas que os consagram como heróis ao final. alguns constroem parques, outros salvam meninas da prostituição.
ainda não descobri meu papel.

melancolia

quando comecei a escrever em um blog individual, a primeira imagem que usei para ilustrá-lo foi uma gravura de dürer chamada melencolia I. é fácil encontrá-la numa busca do google, mas para manter o ritmo vou resumi-la aqui: ela retrata um anjo rodeado de opções para agir mas que, contra todas as expectativas, permanece sentado, com o rosto apoiado no punho fechado e olhar perdido.
a felicidade é uma questão de escolha, mas nascer com o espírito do protagonista da imagem não. é preciso deixar claro que, mesmo diante de uma miríade de caminhos, é inevitável para alguns recostar-se e esperar o que estes trarão, em vez de percorrê-los.
é um problema de fatalidade. mesmo hamlet, o melancólico por excelência, busca reverter sua tristeza com a encenação de uma peça de teatro. mas não é capaz de reverter seu espírito, e todos sabem como a história termina.
apesar dos sinônimos consagrados, o destino trágico não é o destino ruim. é apenas o destino incontornável.

trilha sonora: orbital, the box, pt 1 e 2

domingo, 26 de abril de 2009

continuo por aqui

se as coisas acontecerem como espero, minha biografia vai registrar 4 de abril de 2009 como o dia em que me mudei da barra da tijuca para o bairro das laranjeiras enquanto keiji kunigami mudava do brasil para o japão. (bem, talvez as coisas fiquem melhor para o lado do keiji, e isso seja registrado na biografia dele.) mas o fato é que uma das primeiras coisas que fiz ao me mudar foi listar os amigos que precisam ser chamados a conhecer o novo lar. e fiquei espantado com o número de conhecidos que hoje habitam terras estrangeiras: argentina, estados unidos, inglaterra, itália, holanda, irlanda, japão. fora as que estão com passagem marcada para a frança ou que podem partir para a alemanha a qualquer momento.

mas eu... bem, eu continuo por aqui.

no final de fevereiro comprei bermudas (estava há mais de ano usando somente calças). voltei a sair pela rua de chinelo. fui a todos os jogos do botafogo no maracanã. e, apesar da sunga comprada em cima da hora, sim, eu fui à praia no final do mês passado.

enquanto os outros partem eu começo, aos poucos, a me tornar carioca. a overdose de são paulo em janeiro me fez mal. e esse mal me fez bem. continuo por aqui.

quinta-feira, 19 de março de 2009

a história se repete como farsa

em março do ano passado eu também passei noites em claro fazendo um free lance. em março do ano passado eu também senti um alívio absurdo quando o trabalho acabou. em março do ano passado eu também tinha ingressos para um show. em março do ano passado eu também estava lendo um bom livro sobre gastronomia. em março do ano passado eu também estava sobrecarregado de trabalho.

em março do ano passado o free lance pagou mais. em março do ano passado o alívio foi maior. em março do ano passado eu estava muito mais ansioso para o show. em março do ano passado o livro era melhor. em março do ano passado o trabalho fazia algum sentido.

sou quase a mesma pessoa que era em março do ano passado, subtraída toda a esperança.

segunda-feira, 9 de março de 2009

o dilema do onívoro

parece existir efetivamente na evolução uma espécie de compensação entre cérebro grande e estômago grande. o caso do coala, um dos comedores de cardápio mais restrito encontrados na natureza, apresenta um exemplo de estratégia associada ao cérebro pequeno. não há necessidade de muitos circuitos cerebrais para descobrir o que há para jantar quando tudo o que você come ao longo de toda a vida são folhas de eucalipto. na realidade, o cérebro de um coala é tão pequeno que nem chega perto de preencher todo o espaço do crânio. zoólogos especulam que o coala em outras eras comia uma dieta mais variada e que exigia maior esforço mental do que a adotada por ele agora, e que, à medida que foi evoluindo para seu conceito altamente restrito do que considera uma refeição, o cérebro subaproveitado do animal acabou encolhendo. (que tomem nota disso os que se apegam aos modismos culinários.) para o coala, mais importante do que o cérebro é contar com um estômago grande o bastante para decompor todas essas folhas fibrosas. pelo mesmo motivo, o aparelho digestivo de primatas como nós foi se tornando gradualmente mais curto à medida que evoluíamos de modo a comer uma dieta mais variada e de maior qualidade.
para um monófago com um cérebro do tamanho de um dedal, comer pode ser mais simples, mas também é muito mais precário, o que em parte explica por que existe no mundo um número tão maior de ratos e seres humanos do que de coalas. (...)
o preço dessa flexibilidade em termos de dietas é um conjunto de circuitos cerebrais muito mais complexo e metabolicamente dispendioso.

obra-prima sobre a relação entre estômago e cérebro.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

crônica de santo andré

ter escrito uma crônica de guarulhos me deixou uma sensação de obrigação em escrever uma crônica de santo andré. mas não tenho condições de escrever nada. guarulhos foi ruim e foi triste. santo andré foi ruim e inócuo. o quarto do hotel era muito pior, desfavorável ao isolamento. isso me impelia a fazer passeios pelo abc plaza, e ver aquela gente toda acabava com qualquer melancolia.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

crônica de guarulhos

guarulhos, cidade-rodovia. murada por grandes empresas à beira da dutra, que escondem pequenas casas, padronizadas, com espaço para dois carros à frente, uma portinha, duas janelas. cabe a cada proprietário cuidar de "sua" calçada, formando uma superfície irregular e um desenho estranho. é tênue a fronteira entre o residencial e o comercial. uma cidade cortada assim é sempre triste. "fica de que lado? sentido rio ou sentido são paulo?". por algum motivo, me lembra bukowski dirigindo por los angeles ou são francisco.
guarulhos, cidade-aeroporto. é impossível pôr os pés na rua sem ver um avião. e menor esforço é necessário para ouvi-los. são como um gênero de pássaro em suas diversas espécies nativas. e os hotéis de pernoite, como o que estou hospedado, lotado de turistas atrasados, comissários e comandantes (o que fica bem ilustrado pelo restaurante dumont e o hangar bar).
guarulhos, cidade qualquer. nos poucos metros quadrados ao redor do hotel, que imprimi pelo google maps, contam-se quase uma dezena de ruas com nomes familiares: arthur bernardes, campos sales, nilo peçanha, sete de setembro, oswaldo cruz, siqueira campos, epitácio pessoa. e ainda o hospital carlos chagas.
todos os lugares são o mesmo lugar. o banheiro tem o cheiro daquele do motel do lido em que se entra a pé. de olhos fechados, no táxi, com o ar-condicionado ligado, poderia estar no carro da minha irmã, que eu dirigia três anos atrás. a disposição do quarto do hotel é idêntica à do apartamento que não consegui alugar na glória. tudo tem um paralelo que me transporta, e assim todos os tempos são o mesmo tempo.
falta apenas que todas as pessoas sejam a mesma pessoa.

sábado, 10 de janeiro de 2009

o caracol

saí do aeroporto carregando a mochila com o laptop, o livro da vez, papéis, e arrastando uma mala com roupas e necessidades básicas. cá estou, pronto para uma, talvez duas, semanas de isolamento. as perspectivas não são boas: onde afinal será minha casa, quando eu retornar ao rio de janeiro? tento pensar pelo lado positivo. quando as opções são poucas, quando é pouco o que nos resta, descobrimos quem somos. faz pouco notei que o quarto do hotel não é muito maior que os apartamentos que tenho visto. o que eu queria mesmo? ah, sim: um lugar pra dormir, tomar banho, lavar minhas roupas, cozinhar, trepar, guardar meus livros, receber amigos em pequenos grupos. anotado. deito e começo a ler, vã esperança de tranquilidade. a programação do cérebro hoje (sempre?) inclui reprises. só reprises. uma maratona de temporadas anteriores. parece óbvio, mas precisei ouvir da boca de uma amiga para entender que tanto mergulho no passado é um claro sinal de medo do futuro. sou muito novo, o suficiente para lembrar com clareza de quando ainda era inocente. e o quê, afinal, é necessário para ser feliz: inocência ou maturidade?
ah, não! essa história sobre "ser feliz", de novo...