sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

o último homem do mundo

não. ele não havia percorrido o mundo inteiro para ter certeza de que era o último ser que restara. não era necessário, bastava a sensação, um misto de segurança e enjôo.
pela primeira vez o silêncio não era estático. odiava o vazio, sob todos os aspectos. agora percebia tudo de outra maneira. o silêncio se espalhando, vivo. o silêncio se espalhando vivo emaranhado em tudo nas paredes no ar crescendo cada vez mais. como se, à semelhança da música, ele também tivesse sua dinâmica.
esticou-se no sofá. estava sozinho, isso é óbvio. o telefone não ia tocar. se ligasse, ninguém ia responder. sabia que o cigarro ia acabar, e desejava apenas que acabasse o cigarro antes do fósforo. enchia-se demais de certezas e vontades, e essas certezas comiam sua paciência. não tinha mais medos, era capaz de assimilar tudo. tornara-se uma máquina de fazer cálculos e conclusões. tentou pensar em coisas menos previsíveis, e percebeu que seria o último homem a morrer, e não haveria ninguém para pranteá-lo. ou, quem-sabe-talvez, não morreria nunca mais. imaginou um jogo que disputaria com a vida – seu castigo não seria a morte, porém o tédio assistido. descartou essa possibilidade. voltou-lhe a certeza de que seria o último homem a morrer, e não haveria ninguém para se importar. levantou-se e foi preparar um café.
coou o café direto na caneca e bebeu na cozinha mesmo, em pé. o que o angustiava nesse momento não era a solidão, mas conviver consigo mesmo. talvez sejam a mesma coisa. lembrou-se de quando tinha cinco anos, quando se fechava em seu quarto, sozinho, e fantasiava que era a única pessoa que existia no mundo – tarefa que não era complicada, pois aos cinco anos seu universo se resumia à família e poucos rostos desconhecidos. era simples esquecer essas pessoas. conseguia fazer isso muito bem, não porque pensava que elas não existiam, mas porque simplesmente não pensava.
estava agora numa situação não menos real que suas brincadeiras de infância – apenas inevitável. com a diferença que, quando criança, seu quarto tornava-se cada vez maior. a cada minuto achava um novo espaço, descobria um novo canto, um pequeno pedaço de parede. quando abria a porta e via o corredor e a sala, tudo diminuía, tudo voltava ao normal, à realidade.
andou pelos cômodos como quem se despedia. experimentou o barulho dos seus próprios passos no piso de tábuas. caminhou pelo jardim nos fundos, viu as pedras cheias de musgo, um banquinho enferrujado, vasos quebrados, com a terra emaranhada de raízes mantendo-se firme – via um pouco de vida e morte em tudo.
voltou à sala. havia uma enorme parede branca, muito bem pintada. sentou-se novamente no sofá. a parede enorme e branca era vazia demais e oprimia todo o resto. oprimia até mesmo o pesado relógio de pêndulo. a mesinha, de madeira crua, servia de apoio aos pés e sustentava também o telefone, dois maços de cigarro, a caixa de fósforos e o cinzeiro. acendeu um cigarro. fumava com calma. puxava muita fumaça, prendia-a por bastante tempo. quando estava na metade do cigarro buscou outro dentro do maço. segurou os dois unidos pelos filtros, mexendo lentamente o cigarro apagado, depois o aceso, como se brincasse com ponteiros de um relógio. ficou observando os movimentos de seus dedos. devolveu o cigarro apagado ao maço. deu uma tragada demorada. nesse momento percebeu que os cigarros não eram ponteiros, mas algarismos. os ponteiros continuam sempre inteiros, fortes, eternos. já os algarismos, estes sim são perecíveis.
olhou para os dois maços sobre a mesinha, um fechado e outro aberto. pegou o que estava aberto. contou pacientemente – ainda havia treze cigarros. com os outros vinte, tinha trinta e três. exatamente o número que precisava para escrever de um a doze em romanos. visualizou um grande círculo no chão e formou o um, o dois, o três, depois fez o quatro – usando dois cigarros para formar o v –, até chegar ao nove, quando usou também dois cigarros para fazer um x. por fim, o doze. admirou sua obra de longe, agora sentado na mesinha. ato contínuo, acendeu o cigarro que formava o um. em seguida, um dos cigarros que formava o dois, depois o outro, e assim por diante. burocraticamente. tudo tinha uma ponta de tédio. fumava e acompanhava outro relógio, o pesado relógio de pêndulo.
quando apagou o último cigarro, os ponteiros do relógio pararam. o tempo agora era dele. não soube expressar o que isso significava. não podia dizer que se tornara capaz de fazer passar um dia inteiro em dez minutos, ou dez minutos em uma hora. todo tipo de medida, todo tipo de métrica já não existia mais. o tempo agora era ele.

2 comentários:

Sicknsour disse...

faltou avisar que é texto velho.

Fernanda disse...

gosto não só do modo como escreve, mas como me prende, mesmo num texto maior, sem que eu sinta até o último ponto final.